" BRADO PAULISTA "
Sou nato paulistano.
Sem domínio no cordel.
E no barbante não sou.
Nem doutor nem bacharel.
Mas busquei entendimento.
No rimar de Manoel.¹
Se falhar desculpa eu peço.
Aos queridos cordelistas.
Só quero ser mais um.
Nesse mundo de artistas.
E através de meu bradar.
A voz de tantos paulistas.
E do que vim falar?
Se não de minha terra querida.
Minha terra misturada.
Amada e aguerrida.
Vim falar do meu povo.
Que chora de cabeça erguida.
Somos milhões enlatados.
Espremidos um no outro.
Não podemos gritar.
Fazermo-nos de bobo.
Só podemos aceitar.
Um dia após o outro.
Que louco esse girar.
Já não sei o prumo.
Muito menos a distância.
Há tempos que perdi o rumo.
Mas de mim não vou falar.
Isso é só um resumo.
Vim falar da cidade.
E adianto que ela é dura.
Uma caixa de concreto.
Com fumaça e sem pintura.
Mas repleta de luz.
Até de noite tem cultura.
Somos 11 milhões de rostos.
Num intenso vai e vem.
Mas aqui quem não corre morre.
De fome ou qualquer outro trem.
Bala também mata aqui.
E não vejo prenderem ninguém.
Mas quem sou eu?
O que meu gemer acrescenta?
A não ser umas vãs palavras.
Um pouquinho de pimenta.
Fora isso mais nada.
Sou tormenta sem ferramenta.
Só que eu grito bastante.
Afinal nóis já sofre tanto.
E se ninguém gritar.
O tirano continua a ser santo.
Por pouco tempo.
Mas um tempo e tanto.
É busão que quebra.
Ou que bate e mata um monte.
É busão que encalha.
Não tem túnel, não tem ponte.
E corrupto não falta.
Pegam muito do que vem da fonte.
O restante vai pro povo.
Que anda tonto e alienado.
De fone no ouvido.
Não ligando por estar apertado.
À noite tem novela.
E pra muitos é o adequado.
Entretenimento pra esconder.
Os problemas gritantes.
E não é só em São Paulo.
Por aí já tem bastante.
E aos que se esquecem.
Vou mostrar o degradante.
Pelas ruas há o lixo.
De um povo mal educado.
Ou do governo que não pega.
Podem ser os dois culpados.
A resposta eu não sei.
Mas há lixo espalhado.
O pobre povo da rua.
Morando sem dignidade.
Também é um problema.
E grave nesta cidade.
Que nós vamos enxotando.
Como higiene ou necessidade.
Há também o crack.
Que em silêncio rui vidas.
Mas não escondido.
Pois está exposta a ferida.
Que ninguém quer curar.
Ou admitir que ela exista.
Outra lástima é o transporte.
Que piora dia a dia.
Sobe a passagem, a gasolina.
Mas nenhuma melhoria.
Somos reféns engarrafados.
Vivendo de fé e fantasia.
Sem ao menos um caminho.
Pois as vias estão acabadas.
Tem buraco para todo lado.
E remendos que parecem lombadas.
Com a chuva até piora.
Se é que há meios pra pioras.
Vejam a flora, os canteiros.
Jardins de capim e sujeira.
Outro ponto esquecido.
E tratado como brincadeira.
Nas eleições é debate.
Depois vira tudo asneira.
As promessas são quebradas.
E protestos não fazemos.
Afinal não dá em nada.
E é nada o que valemos.
Pois confiamos em vermes.
E deles merda temos.
Então vamos desconfiar.
Ou então votar melhor.
Para não sermos só presas.
Sob chicotes de um senhor.
É o brado que deixo.
Clamor que eu vim propor.
¹ - Manuel d'Almeida Filho (13 de outubro de 1914 - 8 de junho de 1995), grande cantador e cordelista brasileiro. Seu primeiro cordel - A Menina que Nasceu Pintada com as Sobrancelhas Raspadas - foi escrito em 1936.
Nenhum comentário:
Postar um comentário